SANTA CLARA DE ASSIS E A SINGULARIDADE FEMININA
OLHAR, CONSIDERAR, CONTEMPLAR
Contextualizando
O tempo de Clara de Assis
pertence a um dos períodos mais dinâmicos da história do Ocidente, marcado por
grandes e decisivas mudanças nas diferentes áreas do saber, da convivência e da
ação humana.
Percebe-se
uma riqueza sem fim de pessoas e de acontecimentos, um fervor criativo. Surgem
as Comunas livres e associações, cidades e comércios, cruzadas e peregrinações,
catedrais e universidades... Alguns elementos que ajudam a definir a Idade Média
- que vai do século XI a meados do século XIV.
Nesse
contexto, os setores da Igreja sentem-se desafiados a retornar às fontes
originais da vida cristã e a expressar a própria fé de uma forma nova. Abre-se
na Igreja Ocidental, um novo “tempo evangélico”, marcado por duas
características fundamentais: a pregação
da Palavra e a vivência da pobreza.
A chamada “vida apostólica” é redefinida a partir do Evangelho e busca de uma
vivência cristã mais intensa, não só por parte do clero, mas, principalmente, por
muitos leigos e leigas.
A grande participação das mulheres é um dos
fenômenos mais significativos da história da Igreja Medieval. Clara de Assis
não é uma estrela solitária. Tem seu brilho próprio, mas soma sua luz àquela de
“uma multidão de mulheres” que a partir do final do século XI sentem-se
igualmente atraídas pela novidade do Evangelho.
Esse
despertar evangélico trouxe grande vitalidade para a Igreja. Ao lado da
renovação monástica, surgiu nova forma de vida apostólica, centrada na pregação
e na pobreza. Os principais protagonistas deste movimento eram eremitas ou
penitentes, leigos/as que se propunham seguir Jesus Cristo pobre, assumindo o
Evangelho como regra de vida.
A
sensibilidade evangélica que acentuava a pobreza e a pregação estava apontando
um novo modelo de vida apostólica, que ia além do mosteiro ou do ermo e se
voltava para o mundo.
Durante
o séc. XI e até metade do séc. XII, permanecia a convicção de que a vida
religiosa tinha o seu modelo na vida monástica. A compreensão era de que dois
caminhos eram possíveis para as mulheres: matrimônio ou vida monástica.
Espiritualidade e santidade femininas
É comum
pensar a Idade Média como um tempo de submissão feminina a tudo o que era
prescrito pelos homens. Contudo, o campo da espiritualidade constitui um
exemplo claro da luta feminina por autonomia e liberdade. Muitas mulheres
romperam com o modelo tradicional e buscaram a Deus por outros caminhos mais
adequados à própria sensibilidade, inteligência e capacidade de amar.
A grande
motivação que levava as mulheres religiosas a assumirem a pobreza como forma de
vida era o seguimento a Jesus Cristo pobre, a expressão
concreta desta pobreza incluía a solidariedade com os pobres e excluídos da
sociedade, por amor ao mesmo Jesus
Cristo que neles se fazia presente.
A
vocação de Clara aparece como uma alternativa de vida cristã, em meio à
inquietude feminina dos séculos XII e XIII. Como outras tantas mulheres de seu
tempo, Clara foge ao modelo de vida cristã familiar e ao modelo monástico para
responder ao chamado de Jesus Cristo de uma forma nova, centrada na vivência da
pobreza evangélica, à semelhança dos primeiros discípulos.
Clara
inova também em relação aos movimentos religiosos femininos de sua época. Não
repete simplesmente o que já existia. A partir de suas convicções a respeito do
seguimento de Jesus Cristo e da inquietação que lhe vem de Francisco, encontra
um caminho que se torna alternativa para muitas outras mulheres.
No
Testamento, Clara destaca três aspectos que contribuíram e que fazem parte de
sua vocação, conversão: a iniciativa
de Deus, a mediação de Francisco e o seguimento de Jesus Cristo como Caminho:
- “Entre
outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da
generosidade do Pai de toda misericórdia e pelos quais temos que agradecer está
a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida (TestC
2s)
- Depois que
o altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar o meu coração para fazer penitência, segundo o
exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco, pouco depois de sua
conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu
lhe prometi obediência voluntariamente (TestC 24s eRegC ,1)
- O Filho de
Deus fez-se Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e
seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo (TestC 5).
Clara de
Assis percebeu a necessidade e urgência de vivenciar e seguir o Cristo Pobre e
Crucificado. Ela assumiu este valor como centro de sua experiência cristã:
Seguir Jesus Cristo pobre e crucificado, o Filho de Deus que se fez Caminho ao
assumir a condição humana na forma de Servo, para trazer ao mundo a graça e a
misericórdia de Deus.
Clara
compartilha a mesma experiência de Francisco. Foi ele quem lhe mostrou o
Caminho, com palavras e exemplos (TestC 5). Contudo, a forma de Clara ver Jesus
Cristo e de segui-lo tem algo muito original. Ela não copiou e nem imitou
Francisco. Clara se movimentou com liberdade, guiada pelo mesmo Espírito que
chamou ambos para fazer penitência. (Test. C 24).
O
seguimento de Jesus Cristo, pobre em Clara de Assis, tem forte dimensão
contemplativa. Ela escreve para Inês de Praga na sua quarta carta:
“Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre.
Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o. Com o desejo de imitá-lo,
nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os
filhos dos homens que se tornou por sua salvação o mais vil de todos,
desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das
angustias próprias da cruz.
Se você sofrer com Ele, com ele vai reinar; se
sofrer com ele, com ele vai se alegrar, se morrer com ele na cruz das
tribulações, vai ter com ele a mansão celeste junto aos santos.”
Por que Clara faz uso do espelho?
Clara
usa a metáfora do espelho para apontar as três dimensões da vida de Jesus que
dão sustentabilidade a sua mística.
Os
persas e chineses foram os primeiros a usar o espelho de metal, em forma
circular. Através do Egito, o espelho chegou a Síria e Palestina no séc XIII
aC. O Antigo Testamento conhece os espelhos de bronze para uso pessoal das
mulheres (Ex. 38,8) Diversos textos bíblicos se referem aos espelhos de metal,
de maneira simbólica: Jó 37, 18; Sab 7,26; 2Cor 3, 18; 1Cor 13,12.
Na
literatura da Idade Média a metáfora do espelho é muito usada. H. Grabes
enumera mais de 250 obras medievais que trazem no título a palavra espelho.
Muitos Padres da Igreja e autores medievais usam a simbologia do espelho para
falar do conhecimento.
Clara não
desconhece este sentido, porém, para ela não se destaca a razão, mas o coração,
os olhos, o desejo. Por isso o espelho clareano é mais do que um símbolo; é
sacramento de uma presença!
Na quarta
carta de Clara à Inês de Praga encontramos esse objeto tão comum na literatura
de seu tempo. Na carta ela diz:
“Olhe
dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe
nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente,
vestida e cingida de variedade, ornada também com flores e roupas das virtudes,
todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei.”
Nesta
carta ela revela o seu jeito de contemplar a presença física de Jesus em nosso
meio, pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa
humildade e a inefável caridade. No seguinte trecho, ela trata da questão do
espelho de uma forma singular:
Preste
atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que envolto em panos, foi
posto no presépio! Admirável humildade, estupenda pobreza. O Rei dos anjos
repousa numa manjedoura.
No meio
do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as
fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano.
No fim
desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no
lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa.
Interessante
que Clara não se preocupa em descrever seu caminho de contemplação de maneira
sistematizada, com finalidade pedagógica.
Ela
simplesmente vive e compartilha com suas irmãs sua experiência, em particular
com sua amiga Inês de Praga. É através das cinco cartas escritas, 04 a Inês de
Praga e 01 a Ementrudes de Bruges, que se pode perceber o caminho espiritual percorrido
por Clara. Descobre-se que se trata de uma grande mestra espiritual, de alguém
que abriu caminhos e que teve muitas seguidoras, até hoje. Alguém que
atravessou os tempos e chegou até nossos dias trazendo um caminho bem concreto para
quem quer seguir com fidelidade os passos de Jesus Cristo.
Seu
método é simples, como foi simples toda a sua vida: Olhar, considerar, contemplar. A via de Clara é o mistério da
encarnação do Verbo, sintetizada no presépio, na vida pública e na cruz.
Nos
últimos séculos, entendeu-se a vida contemplativa como um determinado tipo de
vida consagrada na Igreja. Os carismas das diversas ordens e institutos
religiosos foram classificados em contemplativos e apostólicos, com base numa
compreensão de reconhecer Jesus orante e o Jesus como pastor que anuncia o
Reino de Deus. Esta visão redutiva trouxe prejuízo para a Igreja, pois
dispensou a grande maioria dos cristãos a buscar a contemplação como
experiência de vida cristã.
Os
tempos atuais trouxeram de volta o valor, o sentido e a possibilidade da
contemplação em qualquer estilo de vida no horizonte do seguimento de Jesus
Cristo e do compromisso com a causa do Reino. Nesse sentido, Clara de Assis tem
um grande ensinamento a nos dar. Para ela a contemplação não é algo separado da
vida e dos afazeres do cotidiano. Sua contemplação está em sua opção radical
por Jesus Cristo.
Texto elaborado por
Irmã Maria Aroni Rauen, a partir do livro
“O Seguimento de Jesus
Cristo em Clara de Assis” de Delir Brunelli, cf.
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